Aplicação de Inteligência Artificial abre uma miríade de possibilidades à disposição dos profissionais do Direito
Beira a platitude afirmar que as “novas” tecnologias estão criando, mudando e extinguindo profissões. Gostemos ou não, essas tecnologias estão afetando diretamente as profissões jurídicas, não para extingui-las, mas certamente para modificá-las. Palavras e expressões como big data, dashboards, automação, business intelligence (BI), inteligência artificial (IA) e jurimetria passaram a fazer parte do vocabulário da área, inclusive de cursos de Direito, que já se deram conta da necessidade de formar profissionais com competências e habilidades adicionais àquelas tradicionalmente ensinadas.
Essas novas tecnologias se tornaram presentes em todos os aspectos das nossas vidas a partir do surgimento do mundo digital. Os recentes aumentos das capacidades de processamento e de armazenamento de dados e diminuição substancial dos custos foram fatores decisivos para a eclosão do processo conhecido como “digitização” (digitization), ou seja, a transformação de todos os tipos de informação e de mídia em bits (a linguagem binária dos computadores). A digitização, por sua vez, produziu um volume incrível de dados que não existiam e/ou não estavam disponíveis quando os estudos sobre IA começaram na década de 1950. A abundância e a acessibilidade aos dados resultaram no surgimento de soluções baseadas em IA e, por essa razão, sua popularização ocorreu neste século e não no anterior.
O mundo jurídico não está imune a esse fenômeno. Os sistemas eletrônicos de gestão implantados pelo Poder Judiciário vêm tornando os processos judiciais cada vez mais digitais, facilmente acessíveis e transparentes a qualquer pessoa. Com o auxílio de ferramentas de automação (robôs ou bots), é possível acessar, simultânea e quase instantaneamente, conteúdos de milhares de processos judiciais por minuto. A questão é: o que fazer com esses dados?
A resposta vem com a jurimetria, que é a “estatística aplicada do Direito”, utilizada para extrair ou suportar conclusões a respeito de dados jurídicos. Para aplicação da jurimetria, os dados devem ser previamente tratados, incluindo a verificação se eles se apresentam de forma estruturada ou não estruturada.
Para dados já estruturados (número do processo, nome do juiz, vara, valor da causa, assunto, tipo de ação etc.) é possível, mediante a utilização de ferramentas de business intelligence (BI) e com a criação de filtros específicos, a construção direta de painéis de controle de gráficos e de indicadores (dashboards). Após, com a aplicação de técnicas estatísticas, pode-se inferir e suportar conclusões, elaborar novas perguntas, entre outras, para melhor se compreender o passado. Esse trabalho pode ser denominado jurimetria analítica, que consiste na aplicação de métodos estatísticos aos dados estruturados para entendimento de eventos passados.
Por outro lado, para dados não estruturados (textos de decisões judiciais, por exemplo) há necessidade de, primeiramente, estruturá-los para posterior execução da jurimetria. E esse é um dos pontos em que a IA pode ser aplicada através do aprendizado de máquina (machine learning), de modo que o sistema seja capaz de interpretar e/ou identificar informações como o número do processo, o relatório, a fundamentação, a decisão, os argumentos e assim por diante. Feita a estruturação, pode-se, então, aplicar a jurimetria analítica para identificar padrões e comportamentos relativos a eventos passados (análise descritiva).
Embora seja importante o conhecimento do passado, é fundamental a previsibilidade do futuro. Normalmente, ao avaliarem o contexto de uma causa que lhes é apresentada, os advogados oferecem um prognóstico (de ganho, de perda, ou mesmo de recomendação de acordo) utilizando um modelo mental construído com base em sua experiência e capacidade de extrair uma relação de similaridade com processos judiciais de seu conhecimento.
O uso da IA para previsão de eventos jurídicos futuros funciona de maneira parecida. Com os dados já estruturados, algumas técnicas de IA podem ser aplicadas para que o sistema, analisando-os a partir de certas premissas definidas por profissionais do Direito em conjunto com cientistas de dados, possa identificar e extrair padrões. Após analisar e aplicar técnicas estatísticas, o sistema define um modelo de comportamento futuro (predição) com essas determinadas características para aquela amostra de dados. Essa forma de jurimetria pode ser chamada de estratégica ou preditiva porque não se limita a analisar o passado, mas vai além, fornecendo cenários e insights sobre o futuro, habilidade outrora de domínio exclusivo de advogados experimentados. Dessa forma, é possível estimar as probabilidades de uma causa estar predestinada ao êxito ou ao fracasso, ou mesmo de ser o acordo a melhor estratégia, inclusive com a determinação do momento mais adequado para tanto, considerados alguns fatores, dentre eles os custos do processo.
Assim, a jurimetria estratégica com uso de IA abre uma miríade de possibilidades à disposição dos profissionais do Direito, que agora podem construir modelos recorrentes de predição, baseados em padrões extraídos dos seus próprios dados e alimentados automaticamente, para melhoria efetiva e mais estratégica da gestão do risco legal.
Por fim, cabe ressaltar que antes do advento da digitalização dos processos judiciais e da consequente possibilidade de utilização de IA, a aplicação da jurimetria (tanto analítica quanto estratégica) já era possível, todavia exigia enorme dedicação de tempo e um esforço brutal de profissionais qualificados, o que inviabilizava a empreitada de forma recorrente. Pode ser afirmado, ainda, que a IA não substituirá o advogado na prática do direito ou no exercício da profissão. Entretanto, a jurimetria com uso de IA consiste numa valiosa ferramenta à disposição dos profissionais do Direito, sobretudo advogados, que precisam adquirir novas competências e habilidades, em consonância com as exigências de um mercado jurídico que, cada vez mais, dispõe de dados e tecnologias inovadoras.
Renato Mandaliti, advogado, MBA in Insurance & Risk Management pela Universidade de Wisconsin-Madison, co-fundador e CEO da Finch.