USP outorga título de doutor honoris causa a Luiz Gama
A USP (Universidade de São Paulo) outorgou o título de doutor honoris causa póstuma causa a Luiz Gama (foto), um dos maiores intelectuais negros do século 19. A cerimônia ocorreu nesta sexta-feira.
A concessão do título ocorreu em junho deste ano, após ser proposta pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP. Na ocasião, a votação foi unânime.
É a primeira vez que a maior universidade do país dá o título a um brasileiro negro, e a segunda a um cidadão negro. O primeiro foi o ativista e ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela.
O estatuto da universidade declara que o título deve ser concedido “a personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído, de modo notável, para o progresso das ciências, letras ou artes; e aos que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade, o País, ou prestado relevantes serviços à Universidade”.
Luiz Gonzaga Pinto da Gama (1830-1882) foi abolicionista, poeta, jornalista e advogado autodidata que ficou conhecido por libertar centenas de escravizados no século 19. Filho de mãe livre, Gama se tornou escravo após ser vendido pelo pai. Ganhou sua liberdade após aprender a ler e comprovar que nasceu de um ventre livre.
Assistia como ouvinte às aulas da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, que viria a se tornar uma unidade da USP, universidade que hoje lhe concede o título de doutor.
“[Gama foi] um homem além do seu tempo e um homem que no seu tempo não teve dúvidas entre as escolhas possíveis, em fazer aquelas que mais estavam dentro da sua essência de indivíduo, de cidadão, e de compromissado com os valores dessa humanidade que perseguimos”, disse José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, e o primeiro convidado a se pronunciar na cerimônia.
O título foi concedido e, meses depois, outorgado, em um momento de crescente interesse pela sua história, que tem sido alvo de diversas produções artísticas, literárias e acadêmicas.
O historiador Luiz Gustavo Mota estudou em sua dissertação de mestrado na FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP) a clientela do jurista e investigou a sua experiência enquanto abolicionista e ativista social. Ele se debruçou sobre cerca de 200 processos em que Gama atuou, como a conhecida “Questão Netto”.
O episódio tratava de uma disputa judicial pela herança do comendador Manoel Joaquim Ferreira Netto, que incluía inúmeras propriedades, uma grande fortuna e um cartel com mais de 200 escravizados. Com Gama à frente do caso, os cativos conseguiram uma decisão que garantia sua liberdade após mais oito anos de trabalho forçado.
Mota mostra que, ao contrário do que se pensa, o jurista não atuava apenas em causas abolicionistas, mas também defendia brancos, libertos, mulheres, crianças, idosos e trabalhadores de diversas profissões. Ainda assim, 87% de sua amostra pesquisada era negra.
Neste ano foi lançada também pela editora Hedra a coletânea “Obras completas de Luiz Gama”, com cerca de 5.000 páginas que reúne inúmeras documentações inéditas do jurista. O trabalho foi feito por Bruno Rodrigues de Lima, doutorando em história do direito na Universidade de Frankfurt, na Alemanha, e pesquisador do Instituto Max Planck.
As obras reúnem cerca de 750 textos de Gama, dos quais ao menos 600 inéditos, editados por Lima. O pesquisador se dedica a estudar a vida e a obra de Gama há cerca de 10 anos. A maior parte dos documentos encontrados estavam em arquivos públicos da Bahia, do Rio de Janeiro e deSão Paulo.
O advogado também foi representado no longa-metragem “Doutor Gama”, do cineasta Jeferson De. O filme acompanha a trajetória do jurista desde sua infância, e reproduz um dos vários julgamentos que resultaram na liberdade de negros escravizados.
A obra estreou em agosto nos cinemas após meses de espera devido a pandemia de coronavírus, mas já é possível assistir em plataformas de streaming como o Globoplay.
“Vivemos num mundo com tanta violência direcionada aos negros. O que proponho com ‘Doutor Gama’ é abrir uma janela para que a gente perceba o quanto avançamos e o que ainda precisamos fazer. É um diálogo com a luta antirracista de hoje”, disse o cineasta De, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo. (Victoria Damasceno – Folhapress)