Prestes a implementar 5G, Brasil falha em oferecer 4G a todos
Em vias de implementar o 5G nas capitais, o Brasil tem 89 municípios ainda sem cobertura 4G, segundo dados da Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). A quarta geração de internet móvel, usada em celulares, chegou aqui em 2012.
Enquanto a velocidade do 5G permitirá a popularização de carros autônomos e cirurgias remotas, a do 4G possibilita atividades rotineiras para parte do Brasil. A tecnologia impulsionou, por exemplo, as entregas e corridas por aplicativo, negócios que mudaram o cotidiano das pessoas nos últimos dez anos, e o ensino à distância.
As 89 cidades correspondem a 1,6% dos 5.565 municípios brasileiros, mas mais de 22 milhões de pessoas podem estar sem 4G, já que mesmo as cidades conectadas à rede têm desertos de cobertura.
O estado com a menor porção de moradores cobertos é o Piauí, onde apenas 72,25% têm 4G. O acesso é mais escasso na parte Norte e Nordeste do país, únicas regiões com estados onde menos de 80% da população é conectada à tecnologia.
No extremo norte do Brasil, Evandro Silva, 32, espera a quarta geração chegar. Ele mora em Uiramutã, cidade de Roraima que fica na terra indígena Raposa Serra do Sol e faz fronteira com a Venezuela e a Guiana. Das cidades sem 4G, é a com a menor proporção de moradores conectados em qualquer tipo de rede móvel.
Ainda assim, é viável abrir ali uma assistência de celulares, negócio de Silva. Quase sem concorrência, ele recebe na sua loja cerca de 40 clientes por semana.
No último censo do IBGE, em 2010, viviam ali 8.375 pessoas -88,1% delas indígenas, a maior proporção do Brasil. Hoje, a estimativa é que a cidade tenha 11.014 habitantes espalhados em 8.113 km², área cinco vezes maior que a da capital paulista.
Parte deles está em aldeias de várias etnias, como a Macuxi e a Ingarikó, afastadas do centro da cidade. “Aqui as comunidades são contadas por pai de família. Algumas têm 30, 40 pais de família, mas as maiores têm mais de 80”, diz Silva.
Ele conta que o acesso a bancos e cursos online, uma demanda da população, fica prejudicado no 3G. Ele lembra quando a cidade não tinha sequer fornecimento de luz 24 horas por dia, na sua infância, e percebe como o acesso a esses serviços mudou a população.
“Ficou mais fácil se formar aqui dentro do que sair para estudar”, afirma. Ele mesmo está fazendo o curso de licenciatura em educação física à distância e se depara com a precariedade da internet. O mais recente foi há duas semanas, quando tentava, em vão, enviar um trabalho.
“Foi quando a gente descobriu que uma das fibras óticas que liga Roraima com o Amazonas tinha se rompido. Caiu tudo. Wi-fi, sinal de 3G”, conta ele, que atrasou a entrega e precisou pagar uma taxa para enviar a avaliação.
Atividades mais simples, como o comércio eletrônico, também ficam prejudicadas.
“Com 3G você não baixa nem vídeo às vezes. No 4G as pessoas das comunidades poderiam vender seus produtos, publicar em grupos, divulgar o seu trabalho com artesanato e comida típica -tem a farinha, o caxiri”, diz ele.
A situação da cidade deve mudar nos próximos anos.
O edital do 5G exigiu das empresas vencedoras do leilão o compromisso de instalar a geração anterior em localidades ainda sem acesso, como rodovias. As operadoras que levaram a faixa de 2,3 GHz, por exemplo, precisarão cobrir 95% das áreas urbanas dos municípios sem 4G.
Quando a quarta geração chegou ao Brasil, a meta era bem menos robusta: seria preciso instalar a tecnologia em todos os municípios brasileiros com mais de 30 mil habitantes, que somavam 1.180 cidades.
“As contrapartidas do 5G ainda são insuficientes considerando a demanda brasileira”, afirma Flávia Lefèvre, advogada e integrante da Coalizão Direitos na Rede. Para ela, o maior problema está na qualidade do sinal que chega a grande parte dos brasileiros.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, havia quase 5,1 antenas para cada 10 mil habitantes em 2020, segundo o Mapa da Desigualdade de 2021. A distribuição, porém, é desigual.
Enquanto o Itaim Bibi, vizinho do Parque Ibirapuera, tem 49,8 antenas para cada 10 mil habitantes, o Jardim Helena, no extremo leste de São Paulo, atende a mesma quantidade de pessoas com apenas uma. Embora a concentração acompanhe o fluxo de pessoas que se dirigem ao centro durante o dia, ao voltar para casa a população da periferia tem acesso a uma internet precária.
Em Uiramutã, há apenas três antenas.
O celular é o principal dispositivo que o brasileiro usa para entrar na internet. Foram 58% os usuários que acessaram a rede exclusivamente pelo aparelho em 2020, segundo a TIC Domicílios. A pesquisa, feita pelo Cetic (Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação), aponta ainda que essa taxa chegou a 90% entre os que estudaram até a Educação Infantil ou pertencem às classes D e E.
“É óbvio que o mercado não ia atender as demandas por infraestrutura em um país pobre como o Brasil”, afirma Lefèvre, que não vê com bons olhos a manutenção do serviço pela iniciativa privada. “A obrigação de universalizar o serviço e atender a população não é da empresa, é do Estado.”
Marcos Ferrari, presidente-executivo da Conexis Brasil Digital, a associação das telefonias, diz que as empresas expandiram além do obrigatório até o momento que era viável economicamente. “O que não é viável teria que ter política pública, que não houve”, afirma ele.
A receita do negócio, diz, é o fluxo de dados consumidos; a despesa, o investimento de infraestrutura e pessoal.
“Se o fluxo de dados medido não é suficiente para rentabilizar e compensar as despesas, não tem como fazer o investimento, porque nós temos acionistas para prestar contas”, afirma ele.
Além da questão econômica, ele vê outro entrave para a universalização: as leis de antenas das cidades. Formuladas quando se discutia sobre os malefícios que o sinal poderia causar à saúde -debate hoje enterrado-, muitas delas prejudicam a modernização, segundo Ferrari.
A lei que regulava até janeiro deste ano a instalação de antenas em São Paulo, por exemplo, exigia ruas de 10 metros de largura em frente à estrutura. “Quanto mais vulnerável, mais periférica e mais carente a população do bairro, mais difícil é cumprir o gabarito”, afirma ele. A nova lei de antenas da cidade derrubou essas exigências.
De olho no compromisso de abrangência que o leilão do 5G estabeleceu, cidades têm se movimentado para ficar nos primeiros lugares da fila de instalação do 4G. Um exemplo é Teresópolis, município da região serrana do Rio de Janeiro que aprovou uma lei que flexibiliza as normas para instalação de antenas.
O foco, segundo o secretário de Ciência e Tecnologia da cidade, Vinicius Oberg, é a conectividade da área rural. O município tem um cinturão verde que abastece parte do estado do Rio.
Há uma demanda reprimida de instalação de antenas, diz Luciano Stutz, presidente da Abrintel (Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações). “Só as operadoras associadas tinham cerca de 1.800 pedidos para implementação de infraestrutura em São Paulo”, afirma ele.
Ao contrário da advogada Flávia Lefèvre, ele acha que as políticas públicas devem ser estruturadas a partir da demanda.
“Um privado especialista constrói, mantém e atualiza a rede de conectividade, e o governo estimula o lado do consumo, provendo formas de acesso a esses consumidores que quer incentivar e incluir”, afirma. “Toda vez que a política pública de conectividade se deu pelo investimento na oferta (…) acabou a iniciativa abandonada, sem manutenção ou na obsolescência.”
Em comum, ambos acreditam que a prioridade hoje deve ser universalização do 4G.
“O 4G é mais do que suficiente para utilizar serviços públicos e desenvolver atividades de ensino”, afirma Lefèvre. “A gente teria que ter metas mais audaciosas do que as que foram colocadas no edital.”
O Ministério das Comunicações afirma que o leilão 5G “promoverá uma significativa ampliação da cobertura 4G no Brasil”, especialmente em rodovias, povoados, assentamentos e aglomerados urbanos isolados.
“Isso resultará na ‘interiorização’ das redes 4G, reduzindo a desigualdade de infraestrutura e de acesso à internet nos municípios. Assim, populações que residem em áreas afastadas de cidades passarão a contar com o serviço.”
(Daniela Arcanjo – Folhapress /Foto: José Cruz/Agência Brasil)