Médica defende ciência e diz à CPI desconhecer por que foi barrada na Saúde
A médica Luana Araújo (foto) afirmou nesta quarta-feira à CPI da Covid no Senado que desconhece a razão de não ter sido efetivamente nomeada para o cargo dez dias após ser anunciada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga.
Ela, que assumiria o cargo de secretária extraordinária de enfrentamento à Covid-19, disse que nunca recebeu uma explicação detalhada sobre o seu desligamento do cargo. No entanto, citou que o ministro disse que seu nome “não ia passar pela Casa Civil”.
Aos senadores a médica também defendeu a ciência como parâmetro de ações de combate à Covid e reforçou que não há nenhuma opção farmacológica para o tratamento da doença em estágio inicial.
A médica infectologista foi convocada a comparecer diante da comissão, pois os senadores queriam questionar se houve interferência do Palácio do Planalto em sua demissão, após apenas dez dias no cargo mesmo sem ter sido nomeada oficialmente.
Para o relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), o depoimento atestou que ainda hoje o Ministério da Saúde não tem autonomia para definir políticas públicas e a própria equipe.
O vice-presidente da comissão, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), foi além e disse que a falta de autonomia é uma evidência da atuação do “ministério paralelo”, grupo de aconselhamento ao presidente Jair Bolsonaro fora da estrutura da pasta.
“Até o depoimento da doutora Luana, pensávamos que existia um gabinete paralelo, um comando paralelo no enfrentamento à pandemia; e, com a ascensão do doutor Marcelo Queiroga, esse comando paralelo tinha sido neutralizado. O depoimento da doutora Luana traz para nós um elemento novo. É que esse comando paralelo continua atuando”, afirmou após a sessão.
Em suas redes sociais -que depois deletou- a médica era defensora de medidas como uso de máscaras, distanciamento social e condenava o uso de medicamentos sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19, como a hidroxicloroquina.
Ao ser questionada por Renan, ela informou não saber se houve interferência de Bolsonaro, disse que não o conheceu pessoalmente e nunca discutiu assuntos ligados ao tratamento precoce com ninguém do governo.
Por outro lado, afirmou que o próprio Queiroga indicou que a decisão não era dele, que havia sido quem a convidou. “Ele [Queiroga] me disse isto: que lamentava, mas que meu nome não ia passar pela Casa Civil”, afirmou. O ministro chefe da Casa Civil à época era o general Walter Braga Netto.
Após citar a pasta, a médica relativizou sua fala, afirmando que citou a Casa Civil pois entendia que aquela seria a instância em que as indicações são aprovadas ou não, embora mantenha que a indicação se deu fora da estrutura do ministério.
“Ele [Queiroga] me falou que tinha optado pela minha nomeação e que obviamente não duvidava da minha capacidade técnica, muito pelo contrário, que eu tinha sido de muita utilidade. Mas que infelizmente a minha nomeação não havia sido aprovada e que ele lamentavelmente precisava abrir mão de mim”, completou.
Luana reforçou que Queiroga não deu mais detalhes sobre o seu desligamento ou os motivos que levaram à recusa de seu nome. A médica também falou que ela era a única infectologista na pasta no período em que permaneceu no cargo
“Eu, realmente, gostaria de saber. Honestamente, não me foi comunicada qual foi a razão pela qual a minha nomeação não foi aprovada. Eu, simplesmente, fui comunicada de que, infelizmente, essa nomeação não sairia”, afirmou.
A médica foi questionada, mas senadores avaliam que ela não forneceu informações que pudessem fortalecer algumas linhas de investigação da CPI, como a existência de um gabinete paralelo ou a estratégia para atingir uma imunidade de rebanho.
Por outro lado, Renan acredita que o depoimento ajudou a confirmar a percepção de falta de autonomia do Ministério da Saúde, para definir a equipe que vai atuar no enfrentamento à pandemia e também a estratégia a ser adotada.
Embora Luana não tenha dito claramente, os senadores avaliam que sua demissão claramente está relacionada com as posições em defesa do distanciamento social e contra a hidroxicloroquina. Antes de ser nomeada, ela havia escrito em suas redes sociais que o tratamento precoce configurava um “neocurandeirismo” ou um “iluminismo às avessas”.
A médica repetiu a sua visão sobre o tratamento precoce aos senadores. “Todos nós somos absolutamente a favor de uma terapia precoce que exista. Quando ela não existe, ela não pode se tornar uma política de saúde pública”, disse.
Luana ainda usou palavras duras para descrever a atual discussão em torno da hidroxicloroquina. “Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente.”
“Quando eu disse que um ano atrás nós estávamos na vanguarda da estupidez mundial, eu infelizmente ainda mantenho isso em vários aspectos, porque nós ainda estamos aqui discutindo uma coisa que não tem cabimento. É como se a gente estivesse escolhendo de que borda da Terra plana a gente vai voar, não tem lógica”, completou.
O depoimento dela aconteceu um dia após a oitiva da médica Nise Yamaguchi, defensora da hidroxicloroquina
Luana defendeu a ciência em diversos momentos e criticou comportamentos negacionistas, afirmando que uma mistura entre “falta de informação, desespero e arrogância” pode ser letal.
No entanto, ela evitou usar o termo negacionismo, justificando que a raiz desse comportamento é a falta de informação. A médica completou que, uma vez que a “pessoa compreende como a coisa funciona”, ela tira dúvida e “não defende mais o indefensável”. A médica em seguida acrescentou que ciência não é opinião e que não tem lado.
“Ciência não tem lado, ciência é bem ou mal feita, ciência é ferramenta de produção de conhecimento e educação para servir à população, priorizando a vida e a qualidade de vida sempre como objetivo maior. Esta distância ou oposição entre populações e ciência não existe”, afirmou.
Por dois momentos, a ex-secretária foi confrontada com falas negacionistas de Bolsonaro. Ela repetiu que não queria personificar suas críticas em uma única pessoa, mas afirmou que “dói” ter contato com essas visões.
“Na hora que qualquer pessoa, independente do seu cargo e de sua posição social, defende algo que não tem comprovação científica, você expõe a população de seu grupo a uma situação de extrema vulnerabilidade. Todo mundo que diz isso tem responsabilidade sobre o que acontece depois”, disse.
A ex-secretária também rebateu a noção de que médicos estão totalmente liberados para receitar medicamentos sem comprovação de eficácia para o tratamento da Covid-19.
Luana defendeu ferrenhamente a autonomia dos médicos, mas afirmou que isso não configura uma “licença para experimentação”.
“A autonomia precisa ser defendida sim, mas com base em alguns pilares, do conhecimento, da plausibilidade teórica, do volume de conhecimento científico acumulado até aquele momento, da ética e da responsabilização”, completou.
A médica também foi confrontada por senadores que defendem a cloroquina, como os governistas Marcos Rogério (DEM-RO), Eduardo Girão (Podemos-CE) e Luís Carlos Heinze (PP-RS), que citaram estudos isolados. Luana argumentou que alguns estudos apresentam falhas e por isso a melhor forma de colher evidências é através de análise sistemática e revisões de vários deles.
“Depois de um ano, com todo o respeito, com toda a tranquilidade, a gente não pode insistir em algo que não é resolutivo, com tantas outras coisas que a gente precisa para fazer”, afirmou em resposta a Heinze, que insistiu afirmando que 28 países já usam esses medicamentos.
“São mais de 200 países no mundo, senador. E os outros não usam”, rebateu ela.
Em certo momento, o senador Marcos do Val (Podemos-ES), que participava remotamente da sessão, afirmava que defendia a vacina, mas relativizava a falta de eficácia da hidroxicloroquina e outros medicamentos, completando que as questões em torno desse medicamento estavam relacionadas a competições entre os médicos.
Nesse momento vazou um áudio do presidente da CPI, Omar Aziz (PSD-AM), que ofendeu o colega.
“Olha, eu vou dizer para você: depois de horas a mulher falando, um cabra desses vir falar merda. Não precisa responder, não, viu?”, disse Aziz para a médica.
A sessão também teve uma discussão entre Randolfe e Heinze, depois de o senador gaúcho citar novamente na CPI que o estado do Amapá tem a menor letalidade do país após ter adotado o tratamento precoce com hidroxicloroquina.
“O senhor está mentindo, espalhando fake news aqui”, afirmou Randolfe, dando início à discussão.
O Amapá tem de fato uma taxa de letalidade baixa (número de mortes dividido pelo total de casos), mas o índice de mortalidade (número de mortes em relação ao total da população) é o 12º maior do Brasil. Em sua fala, Luana ressaltou que é difícil isolar um único fator e atribuir o número de mortes por Covid à hidroxicloroquina, por exemplo. (Júlia Chaib e Renato Machado – Folhapress)