Lula precisa incluir negros e indígenas na alta hierarquia do governo, diz diretora da Anistia Internacional
A presença de negros e indígenas na alta hierarquia da gestão pública será fundamental para o próximo governo enfrentar o racismo sistêmico, avalia Jurema Werneck, médica e diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.
O governo Lula terá o desafio de cumprir com os compromissos já assumidos de combate à desigualdade racial, como os acordos estabelecidos na Constituição Federal e os tratados internacionais, segundo a diretora.
“A necessidade foi reafirmada pelo número expressivo de votos que o futuro presidente recebeu da população negra e de indígenas.”
Jurema vê como positiva a indicação de pessoas negras para integrarem a equipe de transição do governo Lula, mas avalia que a participação ainda é tímida e precisa ser ampliada.
“Economia, desenvolvimento, saúde, educação, Justiça, segurança pública, assistência social, previdência, cultura e outras tantas áreas ainda requerem a nossa presença e a de representantes indígenas.”
Para a diretora, os governos estaduais também têm obrigações a cumprir no combate à desigualdade racial. Ela lembra que a polícia no Brasil é a que mais mata pessoas negras, e as corporações da Polícia Militar e da Polícia Civil estão sob a gestão dos governadores.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, por email, a diretora da Anistia falou também sobre outros desafios do próximo governo, políticas públicas, o lançamento de um guia antirracismo pelos direitos humanos e a participação da entidade no Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial, evento da ONU realizado neste mês em Genebra.
PERGUNTA – Quais são os desafios do próximo governo com relação à questão racial?
JUREMA WERNECK – Os desafios se referem a cumprir com os compromissos e obrigações que o Estado brasileiro -em especial o governo federal- já assumiu para enfrentar o racismo sistêmico que provoca violações de direitos humanos.
A Constituição Federal e os tratados internacionais que o Brasil aderiu dão legitimidade a este enfrentamento, e a sua necessidade foi reafirmada pelo número expressivo de votos que o futuro presidente recebeu da população negra e de indígenas.
É preciso que se estabeleça a estrutura de governo adequada, que inclui a participação negra e indígena -mulheres, jovens, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência- de forma estratégica em todas as áreas fundamentais de desenho e implementação de políticas públicas, e não apenas nos “nichos” estabelecidos, como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
p. – A Anistia Internacional Brasil afirmou que os direitos humanos devem ser prioridade do presidente eleito, inclusive, neste momento de transição. Que ações se esperam do governo Lula?
JW – É preciso que se coloque os interesses da maioria da população como prioridade. A maioria é constituída de negros, indígenas, mulheres, pessoas LGBTQIA+ que experimentam graves iniquidades cotidianas.
Vai ser importante estabelecer mecanismos consistentes capazes de direcionar as diferentes áreas e setores das políticas públicas para a superação das disparidades. Isso inclui a participação diversa e estratégica de pessoas que representem estes grupos na alta hierarquia da gestão pública.
É preciso inovar, reconhecendo que estamos no século 21, e criar novas estratégias para velhos e novos problemas. Confrontar desde o princípio o grave legado da Covid-19 e dos descalabros na área de segurança pública (em que as polícias foram condutoras de massacres em favelas e periferias). Desarmar a população.
P. – Qual a avaliação da senhora com relação à nomeação de pessoas negras, como o Silvio Almeida, Anielle Franco e Douglas Belchior para o governo de transição? O que isso pode significar de mudança na próxima gestão?
JW – Vejo com bons olhos o reconhecimento de que há pessoas entre nós com competência para contribuir com a transição e com a visão de como o futuro governo precisa agir para cumprir suas responsabilidades de enfrentar o racismo com todas as ferramentas das políticas públicas.
Mas esta participação ainda está muito tímida. Economia, desenvolvimento, saúde, educação, Justiça, segurança pública, assistência social, previdência, cultura e outras tantas áreas ainda requerem a nossa presença e a de representantes indígenas.
P. – O que os governos estaduais eleitos podem contribuir para a questão racial?
JW – Da mesma forma que o governo federal, governos estaduais têm obrigações a cumprir. É preciso lembrar que estão sob gestão dos governadores as Polícias Militar e Civil. A polícia no Brasil é a que mais mata pessoas negras e não protege a vida e a segurança de negros e indígenas.
Há, em todas as áreas da gestão pública, a necessidade de líderes de governos estaduais dedicarem esforços para eliminação das desigualdades raciais e para a garantia de que crianças, jovens, adultos e idosos, de todas as expressões de gênero, possam usufruir de seus direitos.
P. – Qual a expectativa para a participação de negros no governo?
JW – Como disse anteriormente, quando mencionei as nomeações do governo de transição: os nossos têm total competência para contribuir com as responsabilidades do futuro governo no enfrentamento do racismo. Mas essa participação ainda é tímida e precisa ser ampliada.
P. – Que nomes a senhora indicaria para a composição do novo governo?
JW – Acredito que a escolha de nomes é prerrogativa do novo governo que foi eleito. Mas garanto que há uma lista consistente de pessoas negras, indígenas, ciganas, de mulheres e homens cis e trans, de pessoas com deficiência e de jovens, de quem vive no Norte e Nordeste do país, nas águas, nas florestas, nos territórios indígenas e quilombolas, com a experiência de ver e viver de perto o bem e o mal que políticas públicas são capazes de produzir.
O fundamental que o futuro presidente e sua equipe precisam levar em conta é que eles não construíram essa vitória somente com homens brancos ou com pessoas brancas das classes mais altas do Sudeste do país. Não é aceitável acreditar que poderão fazer as mudanças que precisamos deixando de fora a visão e a voz da maioria. Como o movimento negro vem repetindo a tempos: nada sobre nós, sem nós!
P. – Que políticas públicas a senhora avalia como urgentes e que o novo governo pode assumir?
JW – Todas, sem exceção, devem ter como um dos resultados a eliminação das disparidades raciais, de gênero, etárias, além das desigualdades, inclusive regionais.
P. – Poderia dar o exemplo de uma?
JW – O exemplo de maior repercussão se refere às ações afirmativas na educação superior, que permitiram diminuir –ainda que de forma insuficiente– as disparidades na universidade.
Mas temos que lembrar que o racismo é um sistema complexo e requer medidas amplas, nas diferentes áreas e setores da política pública com liderança e financiamentos adequados e consistência ao longo do tempo.
Mas, da mesma forma que em 2002, estamos, 20 anos depois, renovando nossas apostas. Espero que desta vez se faça mais e melhor e que as ações e políticas para o fim do racismo e das desigualdades raciais sejam aplicadas de forma consistente e sejam políticas estatais, desatreladas da experiência efêmera de um governo apenas.
P. – A Anistia está lançando um guia antirracismo pelos direitos humanos. O que consta nele?
JW – O guia, chamado “Como contribuir para uma sociedade antirracista”, faz parte da nossa campanha para engajar mais pessoas na luta antirracista, especialmente as não negras.
Com ele queremos ajudar as pessoas a conhecerem o racismo e refletirem um pouco mais sobre seus impactos na vida e nos direitos dos negros e indígenas. Queremos que a leitura inspire práticas antirracistas no dia a dia para, a partir delas, construirmos um país com acesso a direitos sem discriminação.
P. – A eleição de um parlamento mais conservador pode dificultar o avanço de políticas públicas de combate à desigualdade?
JW – Parlamentares são eleitos para criar e aprimorar leis que garantam o cumprimento das obrigações do Estado brasileiro com os direitos humanos, o enfrentamento ao racismo, das fobias LGBTQIA+ e das desigualdades sociais. Portanto, nós da Anistia Internacional não esperamos outra conduta das pessoas eleitas que não seja fazer avançar essas obrigações.
P. – A senhora participou de uma conferência na ONU, neste mês. O que levou para o evento? Qual a importância de usar estes órgãos internacionais para falar sobre questões internas? O quanto esta exposição ajuda a pressionar ações do governo brasileiro?
JW – Vamos às Nações Unidas em Genebra quando acontecem dois importantes momentos: a Revisão Periódica Universal, quando os Estados membros das Nações Unidas avaliam o Brasil e fazem recomendações para garantir que estejamos na trajetória positiva de cumprimento de nossas obrigações com os direitos humanos, e também durante a revisão do país frente ao Comitê pela Eliminação da Discriminação Racial.
Nós, da Anistia Internacional, enviamos relatórios a esses órgãos informando o descumprimento por parte do Estado brasileiro destas obrigações específicas.
Destacamos temas como brutalidade policial e execuções extrajudiciais, impunidade seletiva, a má gestão da pandemia que trouxe graves consequências para as populações negras e indígenas; racismo religioso, violência política, conflitos de terra e território que provocaram violências e assassinatos, os perigos que ativistas defensores de direitos humanos experimentam no país e os impactos diferenciados que tais violações têm sobre mulheres e LGBTQIA+, especialmente as mulheres trans negras.
Nossa expectativa é que a ONU revise o que foi feito no Brasil até aqui e ofereça recomendações que servirão de base para que o futuro governo tome decisões consistentes para a correção dessa trajetória e para a responsabilização de todos os que estiveram por trás dessas graves violações.
RAIO-X
Jurema Werneck, 60 Médica, ativista, autora e doutora em comunicação e cultura pela UFRJ. É fundadora da ONG Criola, que desde 1992 atua pela garantia dos direitos das mulheres negras no país. Em 2017, assumiu a direção executiva da Anistia Internacional Brasil.
(Tayguara Ribeiro e Priscila Camazano – Folhapress /Foto: Pedro Ladeira – Folhapress)
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