Inclusão racial precisa ser baseada em métricas, diz vice-presidente no Fed

Inclusão racial precisa ser baseada em métricas, diz vice-presidente no Fed

“Medir importa”, resume a executiva americana Desiree Coleman-Fry ao falar sobre as estratégias para ampliar a inclusão racial, social e de gênero nas empresas. Só que esta medição precisa levar em conta vários fatores para garantir um bom resultado, defende.

“As pessoas dizem ‘eu tenho uma equipe diversificada’. Mas comparado com o quê? Se você estava medindo que não tinha diversidade, e agora tem uma pessoa, não conquistou uma vitória”, questiona. “E se todos estão em funções iniciantes, você ainda tem trabalho a fazer.”

Coleman é vice-presidente de diversidade e inclusão do Fed de St. Louis, uma divisão do banco central americano. Antes, trabalhou como vice-presidente de segmentos diversos no Wells Fargo, um dos maiores bancos dos EUA. Ela esteve no Brasil no começo de novembro e passou por Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo.

“Foi lindo ver a preservação da cultura africana em Salvador. Seria tão incrível se outros afro-americanos pudessem sentir o que eu senti quando cheguei lá. Foi mais do que se sentir bem-vinda. Eu senti que minha cultura era celebrada”, comentou.

PERGUNTA – Como vê a inclusão nas empresas brasileiras hoje?
DESIREE COLEMAN-FRY – As pessoas agora pensam como operacionalizar isso, tornar parte do dia a dia. Agora começa o trabalho duro. É preciso usar dados e métricas para medir o progresso ano a ano. Olhar para a composição da representação entre os funcionários, no conselho, considerar como eles estão entregando seus produtos e serviços e se estão atendendo a todos, dado que mais de 50% dos brasileiros se identificam como pretos, pardos ou indígenas.

Que dados e métricas poderiam ser utilizados?
D. C. – Sempre digo que medir importa. Se você está fazendo algo e não está medindo, é discutível. Você precisa começar olhando para a sua representação, mas não só a porcentagem de pessoas. As pessoas dizem: ‘eu tenho uma equipe diversificada’. Mas comparado com o quê? Se você não tinha diversidade e agora tem uma pessoa, não conquistou uma vitória. O padrão ouro é realmente representar as comunidades onde você está situado.
Mas a representatividade pode ser enganadora, porque você olhar e dizer ‘nós temos X por cento da categoria Y. Isso é ótimo’. Mas se todos estão em funções iniciantes, você ainda tem trabalho a fazer, certo?
A liderança é um lugar importante para começar esta conversa. Depois do assassinato de George Floyd, muitas organizações me procuraram e falaram: ‘Gostaríamos de contratar uma diretora de diversidade. Você está interessada?’. Encontrei com um CEO do Vale do Silício e ele disse: ‘meu problema é a equipe de liderança. Ela não é diversa. O que eu deveria fazer?’. Eu respondi: ‘você deveria mudá-la. Por que não? Está no seu rol de possibilidades’.

Como agir na prática para ampliar a diversidade em cargos de liderança?
D. C. – As organizações precisam ser criativas. Reorganize as coisas. Crie uma nova posição de comando, divida as tarefas na liderança para abrir espaço para contratar. Representatividade na governança afeta como os funcionários se sentem. As pessoas não deixam as empresas, elas deixam gerentes.
Qualquer política que uma empresa quer adotar depende que o nível mais alto conheça e entenda as informações, e as repassem para baixo. Mas há um gargalo no nível médio de gerência. É ali que os funcionários têm as suas interações diárias.
Haverá desafios se os gerentes e líderes não entenderem como promover o pertencimento e a inclusão, e de que formas podem criar ambientes de trabalho onde as pessoas se sintam vistas, ouvidas e valorizadas. Do ponto de vista de mitigação de riscos, alguém pode ter uma péssima experiência e sair por aí contando. Se isso for sua única preocupação, ok. Mas, de verdade, como garantir que a aquisição, o gerenciamento de talentos e todo o dinheiro que você investiu em pessoas não sejam desperdiçados?
Liderança inclusiva é uma habilidade do século 21. Nos anos 1980, ninguém ligava. Nos 1990, era ‘consciência cultural, DEI [diversidade, equidade e inclusão] são importantes’. Hoje, você não pode ignorar isso. Você tem que ser capaz de gerenciar uma força de trabalho multicultural, multinacional e multigeracional.

Teria exemplos práticos de como ser uma líder inclusiva?
D. C. – Neste ano, pela primeira vez, estamos incluindo, na avaliação de fim de ano, uma métrica sobre a forma como nossos gerentes precisam agir de modo inclusivo. E estamos criando algumas outras métricas sobre como nossos líderes podem fomentar a inclusão.
Eu também procuro jovens de grupos sub-representados para tentar estabelecer uma relação, e me colocar disponível. Todo líder deveria ter conversas um a um com todos que se reportam a ele, com alguma regularidade. Eu tenho uma vez por semana, e conforme as pessoas enfrentam desafios, elas sabem que há um tempo dedicado para pedir apoio ou ajuda, ou para que possamos pensar juntos.
Nas 500 maiores empresas do Brasil, só 5% dos diretores são negros. Então, será preciso que os indivíduos brancos sejam proativos em construir relações com pessoas que não se pareçam com eles, defender o nome delas quando elas não estão perto. Registrar os feitos delas no trabalho. Isso ajuda a criar novas oportunidades e caminhos.

Como facilitar o processo de chegada na empresa, especialmente em situações de trabalho remoto?
D. C. – Tento fazer nossos líderes entenderem que não queremos que eles sejam apenas gerentes, mas que invistam no sucesso das pessoas e sejam capazes de ajudá-las a maximizar seu potencial. A Salesforce diz que as pessoas com senso de pertencimento, que se sentem ouvidas, respeitadas e valorizadas, têm 4,6 vezes mais chances de fazer seu trabalho melhor.
Isso vem da capacidade de construir relacionamentos. O trabalho remoto torna isso mais difícil, então é preciso trabalhar um pouco mais. Há coisas simples que podem ser feitas, como enviar mensagens para ver como as pessoas estão. ‘Como está sendo seu dia?’, no sentido de ‘eu estou interessado em você como um ser humano. Você está bem hoje?’.
Quando fui contratada, recebi uma lista de pessoas que precisava conhecer. No dia seguinte me deram uma pilha de 30 papéis e esperaram que eu começasse a produzir. Me deram alguns meses para respirar, absorver os materiais e usar o tempo conhecendo pessoas. Disseram: ‘realmente queremos que você foque em construir relacionamentos’. Isso é um elemento chave do sucesso de equipes eficientes.

Além dos líderes, como os colegas de trabalho podem ajudar na inclusão?
D. C. – As pessoas precisam reconhecer o desconforto e ter resiliência emocional para conversas difíceis, como ter de puxar um colega de lado quando você ouve algo ofensivo ou depreciativo. A melhor forma é corrigir na hora, como dizer ‘não acho que isso é apropriado’. Isso dá o exemplo de que este é o padrão esperado.
Ninguém gosta de ser constrangido ou exposto, Em muitas culturas, somos legais e polidos. Ter conversas diretas e honestas é difícil, mas necessário. É resistir ao apelo de apenas ir com o fluxo, especialmente quando o status quo pode não estar funcionando para todos.
Então, se você está em uma reunião e vê um colega ser interrompido, espere a intervenção acabar e diga ‘obrigado, eu quero voltar para algo que o Wesley disse’. Outro exemplo: uma mulher traz uma ideia em uma reunião. Ninguém responde. E três minutos depois, um homem apresenta a mesma ideia com outras palavras e todo mundo diz ‘brilhante’. Você pode dizer ‘obrigado, Tommy, Eu acho que é algo parecido ao que a Gretchen disse. Ela poderia falar mais?’.
Assim, você cria espaço para que as pessoas sejam reconhecidas e apoiadas. Nos EUA, há muitos programas de mentoria. Mas eu ouço muitos colegas, que tiveram grandes conquistas, dizendo ‘eu não preciso de outro mentor. Eu preciso de um apoiador, de uma porta aberta, de uma indicação. Eu já tenho a experiência’.

Como vê a adoção de cotas nas universidades? Faria mudanças no modelo atual?
D. C. – Antes de falarmos de ações afirmativas, temos de perguntar por que esta política existe. Se explorarmos a história e as nossas estruturas, um segmento da população foi sistematicamente discriminado, sujeitado à escravidão, a condições intoleráveis e teve acesso limitado à educação e à saúde. Teve negada a oportunidade de construir riqueza.
É importante dizer isso porque há inclusive líderes negros que dizem ‘bem, eu consegui. Eu me ergui por mim mesmo’. Eles são a exceção, e não a regra. É preciso olhar para os conceitos de equidade e igualdade. Muitas pessoas dizem ‘todo mundo deve depender só do seu mérito’. Isso é igualdade.
Equidade é usar os dados para entender os resultados e examinar se os números variam entre os grupos. Ao olhar para o percentual de pessoas que são contratadas por uma empresa, o total de homens e mulheres é similar? Se não são iguais, por que isso acontece? Há algo no modo como configuramos o sistema que resultou com que menos mulheres conseguissem as mesmas oportunidades que os homens.
Quando você aplica isso a um conceito racial, a diferença de riqueza entre brancos e negros é muito substancial. Brasileiros brancos ganham o dobro do que brasileiros negros. Entre indivíduos negros com nível universitário, a distância é ainda maior. Então não fale sobre igualdade. Igualdade não leva em conta o que aconteceu: há um racismo sistêmico.
No Brasil, temos mais de 50% de negros, indígenas e pardos. As instituições têm 50% de estudantes deste perfil? Se não, por quê? O sistema não está funcionando. Há uma discrepância, e é preciso resolver isso. O sistema de cotas é uma forma, mas não precisa ser a única.

Quais são as outras formas?
D. C. – Equidade é o processo de identificar soluções para fechar essa lacuna. Podem ser problemas no sistema educacional, transporte, questões familiares. Pode ter sido qualquer uma das coisas dolorosas que ocorreram na história. E é preciso, quando você vê esta lacuna, identificar soluções. Se o Brasil reconhece sua história, vê os resultados e não faz nada, que vergonha!
É difícil para as pessoas entenderem, porque elas estão situadas no presente. Dizem coisas como ‘eu estudei, eu trabalhei duro, por que há cotas?’. Você tem que considerar a história. O que aconteceu, você goste ou não, criou o impacto que vemos hoje. As pessoas precisam sair da mentalidade de soma zero, de ‘se eu vencer, você perde’. Se você perde, todos nós perdemos coletivamente.
Imagine um concurso de arremessos de basquete. Um dos competidores tem um tênis Air Jordan novo, teve LeBron James como treinador, refeições balanceadas e preparadas por um chef, uma boa noite de sono. Um motorista o levou até a quadra. E ele vai fazer o arremesso.
Do outro lado, como seria a experiência de alguém que não tem um tênis, está sem casa, não teve acesso a um treinador, à alimentação adequada, nem tomou café da manhã. Teve de pegar o metrô, chegou atrasado e, por isso, terá de fazer o arremesso do meio da quadra. Essas duas pessoas teriam a mesma condição de disputar?
Equidade é dizer ‘ok, vou garantir um transporte para você não chegar atrasado’. Uma loja te doou um tênis. Alguns ex-jogadores vão te ajudar a treinar. Isso seria um pouco mais justo, certo? É o que as cotas estão buscando fazer.

Raio-X
Desiree Coleman-Fry
É vice-presidente de Diversidade, Igualdade e Inclusão no Federal Reserve Bank de St. Louis, uma divisão do banco central americano. Antes, foi vice-presidente de segmentos diversos no banco Wells Fargo. Tem mestrado em administração pública pela universidade Syracuse e graduação em relações internacionais e marketing. Vive em St. Louis, Missouri, com o marido Jason e quatro filhos.

(Rafel Balago – Folhapress /Foto: Pexels)

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