Comissão da Câmara aprova texto-base de projeto sobre contraterrorismo criticado por ‘licença para matar’
A comissão especial da Câmara responsável pela análise do projeto sobre ações contraterroristas aprovou nesta quinta-feira o relatório do deputado bolsonarista Sanderson (PSL-RS) que traz excludente de ilicitude para agentes públicos contraterroristas e que, segundo organizações de direitos humanos, abriria brecha para a repressão de movimentos sociais.
O parecer foi aprovado por 22 votos a 7. Os deputados ainda precisam analisar sugestões de mudança ao texto-base. Depois do colegiado, o texto já poderia ser pautado no plenário da Câmara. Se aprovado, para entrar em vigor, ainda precisará passar pelo Senado e ser sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro.
O projeto é de autoria do deputado Vitor Hugo (foto) (PSL-GO), outro bolsonarista e que foi líder do governo na Câmara. O texto foi apresentado em março de 2019. Em junho deste ano, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), eleito com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, criou a comissão especial para analisar o tema.
O relatório aprovado é criticado por organizações de defesa dos direitos humanos por contemplar um conceito aberto de terrorismo e por autorizar a aplicação das medidas em atos que, mesmo não tipificados como terrorismo, “sejam ofensivos para a vida humana ou efetivamente destrutivos em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave.”
O receio é que na definição sejam incluídos movimentos sociais. Em nota, a organização de direitos humanos Conectas diz que na proposta não há qualquer elemento que diferencie o ato terrorista de crimes comuns e que os únicos requisitos para que se configurem são “resultados genéricos como ‘perigo para a vida humana’ e ‘afetar a definição de políticas públicas’, que nem sequer precisam se concretizar, uma vez que basta que o agente ‘aparente ter a intenção’ de causá-los”.
Para o deputado Alexandre Leite (DEM-SP), membro da comissão especial, em última instância a conceituação poderia levar a uma banalização do termo terrorismo.
“Confundir grupos armados, por mais violentos que sejam, que sitiem cidades, assaltem bancos, com grupos com outros propósitos, sejam ideológicos, religiosos, exige um debate primordial sobre a definição de terrorismo adequada ao Brasil”, afirma.
“Não vou dizer que black blocs ou grupos armados devam ser bem aceitos, mas a gente passa a banalizar o terrorismo, em vez de engrossar a pena ou o rigor da lei para esses casos de formação de quadrilha, sitiamento das cidades”, complementa. “Misturar isso com terrorismo acaba enfraquecendo a lei sobre terrorismo.”
O texto indica que as ações previstas no projeto pressupõem a participação da população brasileira, “especialmente quanto à colaboração com o poder público na obtenção de informações acerca de atitudes suspeitas” e na “construção de um ambiente social seguro e pacífico”.
Além disso, prevê a proteção da identidade de agentes públicos empregados em ações contraterroristas, inclusive com o uso de identidade diferente da verdadeira do agente. Movimentos sociais advertem para a possibilidade de que eles se infiltrem nos grupos com o argumento de “prevenir ou combater a ameaça terrorista”.
O projeto institui o Sistema Nacional Contraterrorista e prevê que a execução da Política Nacional Contraterrorista será fixada pelo Conselho de Defesa Nacional e implementada pela Autoridade Nacional Contraterrorista, nomeada pelo presidente da República.
O texto diz que autoridades responsáveis pelo Comando Conjunto de Operações Especiais e pelo Grupo Nacional de Operações Especiais poderão pedir à Justiça que determine às operadoras de telefonia celular a localização geográfica de aparelhos telefônicos específicos.
Segundo o texto, o requerimento será distribuído, sob segredo de justiça, e o juiz deverá proferir imediatamente uma decisão fundamentada.
“Ele dá prerrogativas que são do Ministério Público, como solicitar grampo telefônico e investigações. Ele tira poderes do Ministério Público”, complementa Leite. “Para mim, a instância ideal seria o Supremo Tribunal Federal. Se está colocando a justiça comum é porque se pretende utilizar isso em todo lugar no Brasil, e isso não é regra, é exceção. Exceção a gente trata no Supremo.”
Um dos trechos mais criticados do relatório abrange excludentes de ilicitude. O primeiro dispositivo propõe legítima defesa para o agente público que atirar para “resguardar a vida de vítima, em perigo real ou iminente, causado pela ação de terroristas, ainda que o resultado, por erro escusável na execução, seja diferente do desejado”.
Há ainda previsão “em estrito cumprimento do dever legal ou em legítima defesa de outrem, conforme o caso, o agente público contraterrorista compondo equipe tática na retomada de instalações e no resgate de reféns que, por erro escusável, produza resultado diverso do intentado na ação.”
E também em “estado de necessidade ou no contexto de inexigibilidade de conduta diversa o infiltrado que pratique condutas tipificadas como crime quando a situação vivenciada o impuser, especialmente, se caracterizado risco para sua própria vida.”
“É uma licença para matar. Pode atirar na vítima para matar o terrorista. O que seria aceitável? Matar a vítima para matar o terrorista e salvar 100 é um dano colateral escusável. Do jeito que está aqui, se matar um por um ou dois reféns por um terrorista está safo. É escusável dependendo da situação”, ressalta o deputado Alexandre Leite.
Em nota, o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos critica a medida. “Ao reduzir as sanções para agentes do Estado que ferirem ou matarem em legítima defesa, somado à amplitude do conceito do terrorismo, concederá uma espécie de licença para matar em caso de hipótese, ainda que vaga, de ameaça.”
O projeto indica que o Comando Conjunto de Operações Especiais e o Grupo Nacional de Operações Especiais, unidades estratégicas contraterroristas, serão diretamente subordinados ao presidente da República ou à autoridade por ele designada e serão compostos por militares e civis especialmente selecionados.
“Nós estamos vendo um projeto que cria poderes excepcionais para o governo federal para construir uma espécie de guarda pessoal do presidente da República”, afirma o deputado Paulo Teixeira (PT-SP).
“E essa guarda pessoal do presidente da República se institui a partir da retirada de competências do sistema nacional de segurança pública, que envolve a Polícia Federal, que envolve a Abin, que envolve as polícias estaduais, que envolve as Forças Armadas, que envolve todo sistema único de segurança pública.”
Na avaliação da deputada Fernanda Melchionna (PSOL-RS), o projeto “é uma excrescência política e jurídica.”
“Em crimes que não ocorrem no Brasil, uma verdadeira polícia política é criada ao arrepio das liberdades democráticas e dando inclusive licença para matar”, afirmou. “Existe uma unidade de entidades policiais, movimentos sociais e juristas apontando a inconstitucionalidade do projeto.” (Danielle Brant – Folhapress)