Bolsonaro admite que não tem como provar fraude em eleições e divulga relatos já desmentidos
Após três anos denunciando supostas fraudes nas eleições brasileiras, o presidente Jair Bolsonaro realizou uma live nas redes sociais nesta quinta-feira para apresentar o que ele chama de provas das suas alegações, mas trouxe apenas teorias que circulam há anos na internet e que já foram desmentidas anteriormente.
Ao longo de sua fala, Bolsonaro mudou o discurso e admitiu que não pode comprovar se as eleições foram ou não fraudadas.
“Não tem como se comprovar que as eleições não foram ou foram fraudadas. São indícios. Crime se desvenda como vários indícios”, declarou.
Durante a apresentação, foram veiculados vídeos divulgados na internet que buscam transmitir a mensagem de que é possível fraudar o código-fonte para computar o voto de um candidato para o outro.
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral), reportagens jornalísticas e checadores já mostraram, diversas vezes, que esse tipo de fraude não é possível e que os vídeos que circulam na internet não indicam qualquer tipo de irregularidade ou que alguma urna tenha sido corrompida.
A apresentação ocorreu em transmissão no Palácio da Alvorada na noite desta quinta, e foi transmitida pela TV Brasil, rede pública do governo. Bolsonaro usou a transmissão para defender que a população vá a atos marcados para o próximo domingo (1º) em defesa do voto impresso.
Estavam presentes os ministros Luiz Eduardo Ramos (Secretaria-Geral da Presidência), Anderson Torres (Justiça), Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), além do senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ).
O responsável pela exibição dos indícios foi um homem identificado apenas como Eduardo, que, segundo Bolsonaro, é analista de inteligência.
O presidente abriu o evento com um discurso de cerca de 40 minutos, sem abordar especificamente as provas que havia prometido. Tratou de remédios sem eficácia comprovada para o tratamento da Covid-19, novamente criticou governadores e prefeitos que promoveram isolamento social e mencionou políticas de seu governo.
Bolsonaro também criticou, por diversas vezes, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), seu provável adversário no pleito de 2022. De acordo com a última pesquisa Datafolha, o petista venceria Bolsonaro no segundo turno por 58% a 31% das intenções de voto.
O presidente também atacou o presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, e defendeu sua tese do voto impresso -chamado por Bolsonaro de “auditável” e democrático.
“Por que o presidente do TSE quer manter suspeição das eleições? Quem ele é? Por que ele fica interferindo por aí, com que poder? Não quero acusá-lo de nada, mas algo muito esquisito acontece”, questionou Bolsonaro.
“Onde quer chegar esse homem que atualmente preside o TSE? Quer a inquietação do povo? Quer que movimentos surjam no futuro que não condizem com a democracia?”
Bolsonaro afirmou ainda, erroneamente, que a contagem dos votos seria feita em uma sala escura no TSE pelo mesmo homem que determinou a soltura de Lula.
O presidente repetiu a mentira de que a contagem das eleições hoje seria secreta e de que quer uma apuração pública, algo que não faz sentido, pois atualmente o processo de totalização dos votos já pode ser auditado, inclusive com um registro impresso, que é o boletim da urna.
Os boletins são distribuídos aos partidos políticos e afixados nos locais de votação em cada seção eleitoral. A impressão e publicidade dada aos boletins de urna impressos ao fim da votação, às 17h, em cada seção eleitoral garantem a auditoria e impedem fraudes na totalização, pois uma diferença entre os números impressos e os totais podem ser identificados.
A proposta do voto impresso em debate no Congresso e defendida por Bolsonaro não provocaria alterações na contagem dos votos.
Embora tenha prometido provas, em determinado momento da transmissão, o presidente transferiu a quem defende o sistema eletrônico a responsabilidade de mostrar fatos concretos.
“Será que esse modo de se fazer eleições é seguro, é blindado? Os que me acusam de não apresentar provas, eu devolvo a acusação. Me apresente provas [de que] não é fraudável”, desafiou.
Como indícios de fraude, Bolsonaro exibiu vídeos de analistas e jornalistas acompanhando a apuração do primeiro turno de 2018.
Naquele pleito, Bolsonaro chegou a marcar 49% dos votos quando as parciais começaram a ser divulgadas. A primeira divulgação de resultados parciais, pouco depois das 19h, realmente mostrava Bolsonaro com 49,02% dos votos, e um total de 53,49% das urnas apuradas.
Naquele momento o status da apuração por região divulgado pela televisão e mostrado na live de Bolsonaro era o seguinte: Norte (48,02%), Nordeste (43,93%), Centro-Oeste (73,51%), Sudeste (10,99%) e Sul (85,38%).
Ele aponta que o fato de o Nordeste estar mais adiantado e o Sudeste mais atrasado seria indício de fraude. No entanto, se houvesse alguma adulteração dos resultados durante a apuração, como o vídeo indica, isso poderia ser comprovado por meio de auditoria com os boletins de urna.
A variação das porcentagens ao longo da apuração depende tão somente da ordem em que as urnas são apuradas. O resultado das seções eleitorais são transmitidos ao TSE por meio de uma rede exclusiva da Justiça Eleitoral, o que impediria qualquer tentativa de interceptação por hackers por não estarem conectadas à internet.
Isso porque, com uma fraude, os resultados impressos nos boletins não corresponderiam aos totais apresentados pelo TSE como resultados finais. Os boletins são impressos quando as urnas eletrônicas são encerradas. Ou seja, nas seções eleitorais os resultados já são conhecidos e estão registrados em papel. O que ocorre depois disso é a transmissão dos resultados e a totalização.
Bolsonaro também mostrou como indício de fraude uma teoria já desmentida em 2018, após publicação de um vídeo de uma candidata a deputada federal pelo PSL.
Bolsonaro alega que haveria um padrão na apuração minuto a minuto do segundo turno das eleições de 2014, disputado por Dilma Rousseff (PT) e por Aécio Neves (PSDB). O presidente afirma que Aécio venceu aquele pleito, tese rechaçada pelo próprio tucano.
Como “prova” para sua afirmação, Bolsonaro argumentou que, na apuração do segundo turno, Aécio e Dilma apareceram intercalados na liderança de votos recebidos por mais de 200 minutos.
Na teoria propagada pelo presidente, esse tipo de padrão matemático não poderia ocorrer de forma espontânea.
O problema é que, além de a metodologia utilizada fazer pouco sentido, os próprios cálculos estão incorretos, como mostrou a Agência Pública após publicação do vídeo por Naomi Yamaguchi ainda em 2018. O vídeo é intitulado “Prova das fraudes nas urnas! Exclusivo e Urgente” e foi postado na página de Yamaguchi, que concorreu pelo então partido político do presidente.
A alegada alternância entre Dilma e Aécio não aconteceu. Mesmo se considerada a questionável metodologia do vídeo, ao efetuar os cálculos corretamente, o suposto padrão desaparece.
No vídeo que serve como base para a teoria de Bolsonaro, um homem anônimo é entrevistado por Yamaguchi e diz ter encontrado um padrão nos dados divulgados minuto a minuto que indicariam fraude, pois tal alternância entre Aécio e Dilma no recebimento da maioria dos votos a cada parcial só seria possível por meio do uso de um algoritmo.
Ao observar o gráfico com os votos apurados a cada minuto pelo TSE, é possível ver que não há um padrão, tampouco que Dilma e Aécio aparecem continuamente intercalados por mais de 200 minutos.
O que o gráfico mostra é que, no início da apuração, Aécio recebe sempre mais votos do que Dilma e que, a partir das 18h25, Dilma registra quase sempre um ganho maior de votos.
De acordo com o TSE, esse comportamento é explicado pela distribuição geográfica da apuração das urnas.
No início da contagem dos votos, a apuração ocorreu predominantemente nas regiões Sul e Sudeste, onde Aécio venceu. Com isso, o tucano manteve a dianteira na apuração parcial. Mas a situação se inverteu com a computação dos votos do Norte e Nordeste, onde Dilma atingiu ampla vantagem. Isso consolidou a vitória da petista, que foi reeleita com 51,6% dos votos, conta 48,3% de Aécio.
Em 2018, antes de ser eleito, Bolsonaro já dizia que acreditava que só poderia perder na fraude. Apesar de levantar suspeitas sobre a urna, ele assumiu o cargo. Durante seu mandato, seguiu fazendo alegações infundadas.
Em março de 2020, Bolsonaro chegou a prometer mostrar provas “brevemente” de fraude na eleição de 2018 -ele disse que deveria ter sido eleito no primeiro turno, e não no segundo.
“Eu acredito, pelas provas que eu tenho nas minhas mãos, que vou mostrar brevemente, eu fui eleito em primeiro turno”, afirmou Bolsonaro na ocasião. “Nós temos não apenas uma palavra, nós temos comprovado. Nós temos de aprovar no Brasil um sistema seguro de apuração de votos”, disse na ocasião.
Naquele pleito, o atual mandatário venceu Fernando Haddad, no segundo turno, por 55,13% dos votos válidos. O petista recebeu 44,87% dos votos válidos.
Contra as supostas fraudes, Bolsonaro defende a adoção do voto impresso. Tramita no Congresso uma proposta nesse sentido, mas a ideia conta com oposição de uma coalizão de partidos, alguns deles da própria base de Bolsonaro. As chances de aprovação são consideradas mínimas até mesmo por aliados do presidente.
As acusações do presidente demonstram que sua preocupação, ao exigir o voto impresso, está mais em gerar desconfiança no processo eleitoral do que em melhorar a segurança das urnas efetivamente.
Especialistas em segurança que defendem o voto impresso apontam que a utilidade do boletim de urna, para garantir que não há fraude na totalização, é mais um ponto a favor do voto impresso, conforme está sendo discutido na Câmara.
Do mesmo modo que o boletim garante a totalização da eleição, o voto impresso seria uma forma a mais de auditar se o registro de cada voto é feito corretamente durante a votação.
O TSE, por outro lado, aponta que as auditorias hoje existentes já seriam suficientes para atestar a lisura do pleito. Além disso, o tribunal aponta uma série de pontos negativos ou obstáculos para a implementação do voto impresso.
Além disso, caso o voto impresso seja aprovado no Congresso, especialistas na área apontam que seria preciso tempo para a implementação. Paciência não faz parte dos planos de Bolsonaro, que usa o projeto como condição para o que chama de eleições limpas em 2022.
“Eleições no ano que vem serão limpas. Ou fazemos eleições limpas no Brasil ou não temos eleições”, disse Bolsonaro em 8 de julho.
Já no dia seguinte, afirmou: “Não tenho medo de eleições, entrego a faixa para quem ganhar, no voto auditável e confiável. Dessa forma [atual], corremos o risco de não termos eleição no ano que vem”, disse a apoiadores.
Uma auditoria independente promovida pelo PSDB entre 2014 e 2015 concluiu que não foi possível identificar fraudes na votação de 2014. No entanto, os autores fizeram várias sugestões de mudanças e sustentaram que não era possível fazer uma auditoria externa independente e efetiva do sistema. O tribunal contesta essas conclusões e sustenta que o sistema já é completamente auditável.
Em julho deste ano, Aécio disse não acreditar que tenha ocorrido fraude nas eleições de 2014. Aloysio Nunes (PSDB), que concorreu na mesma chapa como vice, afirmou ao jornal Folha de S.Paulo que a “eleição foi limpa” e que perderam a disputa “porque faltou voto”.
Acuado nos levantamentos eleitorais, Bolsonaro passou a fazer declarações golpistas que colocaram em dúvida a realização do pleito do próximo ano.
Recentemente, Bolsonaro passou a anunciar que faria uma demonstração sobre as supostas irregularidades identificadas na disputa de 2014.
Nesta quinta, Bolsonaro disse que iria mostrar “várias inconsistências” nas eleições, sendo “algumas coisas inacreditáveis”. “Tem uma demonstração, que, você pode [vencer], mas é mesma coisa que ganhar sete vezes consecutivas na Mega-Sena”, disse ele a apoiadores, em declaração divulgada por uma página bolsonarista nas redes sociais.
“Vai ganhar eleições quem tem voto. Se não for dessa maneira, poderemos ter problema em 2022. E não quero ter problema”, disse Bolsonaro .
O questionamento do presidente às urnas eletrônicas não é novidade e foi uma de suas bandeiras de campanha. Quando deputado, Bolsonaro foi o autor da proposta que determinava que as urnas emitissem um recibo com as escolhas de cada eleitor. Aprovada pelo Congresso em 2015, a emenda constitucional foi anulada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).
Bolsonaro e sua tropa de choque atribuem o cenário desfavorável à PEC do voto impresso atualmente em discussão no Congresso ao que consideram uma interferência de Barroso, que se tornou alvo de críticas e xingamentos do chefe do Executivo.
A polêmica do voto impresso chegou ao ministro da Defesa, general Walter Braga Netto, que, em nota, espelhou o discurso do chefe afirmando que existe no país uma demanda por legitimidade e transparência nas eleições.
Segundo ele, mais uma vez levantando uma bandeira bolsonarista, a discussão sobre o “voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima”.
“Acredito que todo cidadão deseja a maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes no Executivo e no Legislativo em todas as instâncias”, afirmou o militar.
“A discussão sobre o voto eletrônico auditável por meio de comprovante impresso é legítima, defendida pelo governo federal, e está sendo analisada pelo Parlamento brasileiro, a quem compete decidir sobre o tema”, afirmou, em um recado indireto a ministros do STF. (Ricardo Della Coletta, Renato Machado e Renata Galf)
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